quinta-feira, 20 de outubro de 2016

A CIÊNCIA POR TRÁS DOS APPS VICIANTES


AS EMPRESAS MAIS BEM-SUCEDIDAS DO VALE DO SILÍCIO UTILIZAM O DESIGN BEHAVIORISTA PARA TURBINAR NOSSOS NÍVEIS DE DOPAMINA E CRIAR UMA SENSAÇÃO DE “QUERO MAIS”. NESTE ARTIGO, IAN LESLIE MOSTRA QUE OS PSICÓLOGOS ESPECIALIZADOS NA CIÊNCIA DA PERSUASÃO ESTÃO PREOCUPADOS COM O RUMO QUE ESSA HISTÓRIA VEM TOMANDO


Em 1930, um psicólogo da Universidade Harvard chamado B.F. Skinner construiu uma caixa e colocou um rato faminto dentro dela. No canto da caixa havia uma alavanca. Ao circular pelo espaço, o animal encostava por acidente nessa alavanca, e o mecanismo arremessava na caixa uma pílula de comida. Depois de passar pela caixa algumas vezes, o rato aprendia a ir direto para a alavanca: a recompensa recebida reforçava o comportamento. Skinner afirmava que o mesmo princípio poderia ser aplicado a qualquer “operante”, fosse ele homem ou rato. O psicólogo batizou a caixa de “câmara de condicionamento operante”, mas ela ficou conhecida como caixa de Skinner.


O cientista acabou se transformando no maior expoente de uma linha da psicologia chamada behaviorismo (do inglês “behaviour”: comportamento, conduta), O behaviorismo partia da seguinte premissa: o comportamento humano pode ser entendido como uma função entre incentivos e recompensas. Não se deixe distrair por questões nebulosas relacionadas a pensamentos e sentimentos impossíveis de observar, diziam os behavioristas. Pense apenas na maneira como o ambiente ao redor do “operante” determina as ações que ele realiza. Compreender a caixa equivale a compreender o comportamento. E criar a caixa certa equivale à capacidade de controlar o comportamento.


Skinner viria a ser o último “purista” do behaviorismo. A partir do final dos anos 50, uma nova geração de estudiosos comandou um retorno aos processos mentais internos da psicologia, tais como memória e emoção. O behaviorismo, porém, nunca desapareceu. Recentemente ele surgiu em novo formato, agora como uma disciplina desenvolvida por empresas e governos com o objetivo de influenciar as escolhas que fazemos todos os dias: o que compramos, com quem conversamos, como trabalhamos. Os novos praticantes do behaviorismo estão especialmente interessados na capacidade que as interfaces digitais – essa caixa onde passamos boa parte do tempo – demonstram para determinar as decisões humanas. Essa disciplina incipiente ganhou o nome de “design behaviorista”, e seu criador atende por B.J. Fogg.


No início deste ano fui a Palo Alto participar de um workshop sobre design behaviorista comandado por Fogg, em nome da instituição para a qual ele trabalha: a Universidade Stanford. Diante das salgadas tarifas de roaming entre Estados Unidos e Inglaterra, acabei passando muito tempo em cafés com wi-fi grátis. Li a frase “aceitar e conectar-se” tantas vezes que comecei a vê-la como o mantra da Califórnia. Aceitar e conectar-se, aceitar e conectar-se, aceitar e conectar-se.


Eu nunca tinha usado o serviço do Uber, e pensei: que lugar do mundo poderia ser melhor do que este para experimentar? Um dia, quando estava num Starbucks pela manhã, abri o aplicativo e solicitei um motorista para me levar até o campus de Stanford. Dois minutos depois o carro encostou na frente do café: um estudante de engenharia de Oakland iria me conduzir ao meu destino. Paguei sem precisar pagar. Parecia mágica. Bem... O workshop reunia uns 20 e poucos executivos de Estados Unidos, Brasil e Japão, encarregados de levar os segredos do design behaviorista de volta para suas empresas natais.


Fogg tem 53 anos. Ele viaja o mundo carregando consigo um sapo e um macaco de pelúcia, presentes na sala também naquele dia. Além disso, o professor faz “plin” num xilofone de brinquedo para marcar o fim de um intervalo ou de uma sessão de trabalho em grupo. Alto, enérgico, dono de uma simpatia incansável, ele costuma pontuar sua fala com expressões empolgadas, como “demais” e “sensacional”. Considerando que sou inglês, essa alegria desavergonhada me pareceu desconcertante a princípio. Depois de um tempo, no entanto, aprendi a gostar do jeito dele – assim como os europeus que se mudam para a Califórnia esquecem a antiga paixão por estações bem definidas e ficam viciados em calor. Além do mais, Fogg é gente boa. Com seu sorriso cheio de dentes e sua voz anasalada, ele tem um jeito de nerd fofinho.


Antes do workshop, conversamos por telefone e ele me contou que havia lido os clássicos durante seu mestrado na área de Humanas. Fogg não viu nada de mais em Platão, mas se identificou muito com a tentativa aristotélica de organizar e catalogar o mundo, de enxergar sistemas e padrões por trás da barafunda de diferentes fenômenos. Ele lembrou: ao ler Retórica, de Aristóteles – um tratado sobre a arte da persuasão –, “a ficha caiu: um dia isso aqui vai ser usado na tecnologia”.


Em 1997, no último ano de seu doutorado, Fogg fez uma palestra na cidade de Atlanta, durante um congresso que discutia como os computadores poderiam ser usados para influenciar o comportamento dos usuários. Ele percebeu que as “tecnologias interativas” tinham deixado de ser apenas ferramentas de trabalho e se transformado em parte integrante do cotidiano das pessoas: eram usadas na gestão das finanças domésticas, nos estudos e na saúde. Mesmo assim, os profissionais da tecnologia ainda pensavam mais nas máquinas que criavam do que nos seres humanos que usavam as máquinas. Fogg se perguntava: e se criássemos softwares educativos, que convencessem os alunos a passar mais tempo estudando? Ou um programa de gestão financeira que incentivasse os usuários a economizar? Ele concluiu que, para chegar às respostas a essas perguntas, seria necessário usar conceitos da psicologia.


Durante a palestra, apresentou os resultados de uma experiência simples que ele havia realizado em Stanford. O estudo mostrava que as pessoas dedicavam mais tempo a uma tarefa quando trabalhavam num computador que já tivesse sido útil a elas em outras ocasiões. Ou seja: a interação com a máquina seguia a mesma “regra de reciprocidade” identificada pelos psicólogos na vida social. Fogg argumentava que a experiência era importante menos por suas conclusões específicas do que por suas implicações: os aplicativos para computadores poderiam ser metodicamente projetados para explorar as regras da psicologia, levando as pessoas a fazer coisas que talvez não fizessem por outras vias. No relato sobre o estudo, Fogg escreveu: “A decisão sobre quando e onde esse tipo de persuasão é benéfico e ético deve ser tema de pesquisas e debates futuros”.


Ele sugeriu a criação de um novo campo, situado na encruzilhada entre a ciência da computação e a psicologia, e propôs um nome: “cativologia” (“captology”, em inglês: uma mistura entre o termo “captive”, que significa cativo, prisioneiro, e a abreviação da expressão “computers as persuasive technologies”, ou computadores como tecnologias de persuasão). Com o tempo, a cativologia se transformou no design behaviorista, que hoje está inserido no sistema operacional invisível da vida cotidiana. E-mails que induzem o leitor a comprar imediatamente, aplicativos e games que prendem a atenção, formulários online que nos empurram para uma decisão em detrimento de outra: tudo isso foi desenhado para hackear o cérebro humano e capitalizar nossos instintos, manias e defeitos. As técnicas utilizadas para fazer isso costumam ser toscas e descaradamente manipuladoras, mas estão se tornando cada vez mais refinadas – e, consequentemente, menos perceptíveis.


A palestra de Fogg em Atlanta provocou reações exaltadas do público, que se dividiu em dois grupos: de um lado, “isso é perigoso, equivale a criar as ferramentas necessárias para construir uma bomba atômica”; de outro, “isso é espetacular, pode valer bilhões”.


Fogg já foi chamado de “fazedor de milionários”. Incontáveis empreendedores e engenheiros do Vale do Silício passaram por seu laboratório em Stanford, e alguns deles ficaram bem ricos.


O próprio Fogg, porém, não faturou milhões com as próprias ideias. Ele continuou em Stanford, e atualmente realiza poucos trabalhos comerciais. Está cada vez mais incomodado com um pensamento: pelo jeito, aquelas mesmas pessoas que lhe haviam dito que suas ideias eram perigosas estavam tramando alguma coisa.


Durante o workshop Fogg explicou os elementos de sua teoria sobre mudanças comportamentais. Para que alguém faça alguma coisa – comprar um carro, ler um e-mail ou “pagar” 20 flexões –, é preciso que três coisas aconteçam ao mesmo tempo. A pessoa tem de querer, tem de poder e precisa ser impulsionada a fazê-lo. O gatilho, o impulso para agir, só é eficaz quando a pessoa está extremamente motivada – ou quando a tarefa é extremamente simples. Se a tarefa for difícil, as pessoas podem ficar frustradas; se as pessoas não estiverem motivadas, podem acabar ficando irritadas.


Um dos atuais alunos de Fogg me falou sobre um protótipo de um programa de fonoaudiologia que ele está ajudando a adaptar. Ao conversar com os usuários, ele descobriu que os pais, desejosos que o programa funcionasse de fato, achavam a navegação difícil, e estavam frustrados. Suas crianças já usavam o programa sem dificuldade, mas o achavam chato – e ficavam irritadas. A estrutura proposta por Fogg ajudou a encontrar um jeito de avançar. Os pais agiriam, caso o programa se tornasse mais fácil de usar; os filhos fariam o mesmo, se a atividade parecesse mais um jogo e menos um dever de casa.


De acordo com Fogg, é mais fácil resolver a frustração do que a irritação. Quando queremos que as pessoas façam alguma coisa, nosso primeiro instinto costuma ser aumentar a motivação: tentar convencê-las. Às vezes funciona; com frequência, porém, o melhor caminho é facilitar aquele comportamento. Fogg tem uma máxima: “É impossível convencer as pessoas a fazer aquilo que elas não querem fazer”. Políticos em busca de votos fazem discursos ou aparecem na televisão, mas não facilitam a ida dos eleitores às urnas. Bancos anunciam a qualidade de seus serviços, em vez de reduzir o número de cliques necessários para abrir uma conta corrente.


Quando um episódio de House of Cards termina, no Netflix, o capítulo seguinte começa automaticamente – a não ser que o espectador aperte um botão para parar. Só que aí a motivação está elevada, já que o episódio anterior deixou o público ansioso para saber o que vai acontecer a seguir, e a cabeça está mergulhada no universo da série. Nesse caso, o grau de dificuldade é reduzido a zero. Na verdade, menos do que zero: é mais difícil parar do que assistir a mais um. Partindo do mesmo princípio, o governo britânico começou a “empurrar” as pessoas a adotar os programas de previdência oferecidos pelas empresas: essa é agora a opção-padrão na “tela”, e não mais uma alternativa.


Quando a motivação é grande o suficiente – ou quando a tarefa é fácil o bastante –, as pessoas ficam mais receptivas aos gatilhos: um celular que vibra, uma notificação do Facebook, um e-mail de uma marca de roupas oferecendo uma oferta por tempo limitado. Se for bem desenhado (ou “quente”), esse gatilho atinge a pessoa no momento exato em que ela está mais disposta a agir. Segundo Fogg, as dez palavras mais importantes para o design behaviorista são: “ponha um gatilho ‘quente’ no caminho de uma pessoa motivada”.


Caso o gatilho estimule a pessoa a fazer algo de que ela não gosta, aquela provavelmente será a última vez; se ela gostar, porém, vai realizar a ação repetidas vezes – e de forma inconsciente. Depois de pegar o primeiro Uber, nem me ocorreu a ideia de circular por Palo Alto de outra maneira. Fogg afirma que as marcas deveriam fazer exatamente isso para criar hábitos de consumo. Quanto mais imediata e intensa a descarga de emoção sentida na primeira vez, maior a probabilidade de que aquela ação se torne uma escolha automática. Por isso as companhias aéreas colocam uma taça de espumante na mão do passageiro assim que ele afunda na poltrona da classe executiva; por isso a Apple se preocupa tanto com o primeiro encontro do consumidor com um novo celular da marca.


Essa descarga inicial de dopamina estabelece um elo entre usuário e produto. Fogg cita o Instagram e os 12 diferentes filtros oferecidos pelo aplicativo aos usuários. Evidentemente, um dos benefícios é funcional: o usuário tem controle sobre as próprias imagens. Mas a verdadeira operação é de cunho emocional: antes mesmo de publicar a foto, a pessoa se sente uma artista. E aí surge mais um dos princípios de Fogg: “Ajude as pessoas a serem bem-sucedidas”. Em outras palavras, “dê superpoderes a elas!”.


O exemplo do Instagram gera sensações contraditórias em Fogg. De certa forma, ele se sente parcialmente responsável – e culpado – pelos impactos do aplicativo. Em 2006, dois alunos de Fogg trabalharam juntos num projeto batizado de Send the Sunshine (“Envie a luz do sol”). Eles partiram da seguinte sacada: um dia, os telefones (isso foi antes da era dos smartphones) serão usados para enviar emoções. Se um amigo está num lugar e o tempo está feio e você está debaixo de sol, o celular incentivaria você a tirar uma foto e mandar para o colega, como forma de animá-lo. Um desses alunos era Mike Krieger, que acabou se tornando cofundador do Instagram – aplicativo no qual mais de 400 milhões de usuários compartilham a luz do sol, o entardecer (e incontáveis selfies).


A teoria de Fogg foi criada antes que as redes sociais dominassem o mundo. Facebook, Instagram e outros elevaram o design behaviorista a níveis de sofisticação que ele jamais poderia imaginar. Os aplicativos das redes sociais mergulham num dos mais profundos poços de incentivo para o ser humano. Quando experimentamos contatos sociais, nosso cérebro libera substâncias químicas prazerosas, que ajudam a criar hábitos – mesmo que esses contatos sejam apenas simulacros de relações. E o gatilho mais “quente” que existe são outras pessoas: você, seus amigos e seus seguidores estão sempre incentivando uns aos outros a utilizar os serviços por mais tempo.


Fogg me apresentou a uma de suas ex-alunas, Noelle Moseley, que hoje trabalha como consultora para empresas de tecnologia. Noelle contou que havia conversado recentemente com usuários frequentes do Instagram: jovens mulheres, que cultivavam diferentes personalidades em diferentes redes sociais. O objetivo delas era ter o maior número possível de seguidores – esta seria uma forma de medir sucesso. Cada novo seguidor, cada comentário representava uma nova descarga de emoção. No entanto, passar a vida correndo atrás de curtidas não é lá muito agradável. As mulheres que responderam à pesquisa passavam horas pensando em jeitos de organizar a própria rotina para poder tirar fotos que seriam postadas em cada uma de suas “personas”; diante disso, ficava impossível desfrutar das atividades propriamente, e o resultado era tensão e infelicidade. “Era quase uma doença”, explicou Noelle.


B.J. Fogg nasceu numa família de mórmons, que ajudou a incutir nele uma simpatia inabalável e uma forte necessidade de acreditar que seu trabalho ajuda a melhorar o mundo. Durante nossas conversas, os únicos momentos em que ele ficou mais sombrio foram quando falamos sobre o mau uso de seus conceitos no ambiente comercial. Fogg se incomoda com a ideia de que empresas como Instagram e Facebook estejam usando o design behaviorista para transformar os consumidores em escravos. Ele lembra de Nir Eyal, seu ex-aluno, autor de Hooked: How to Build Habit-Forming Products (“Fisgado: como criar produtos que se transformam em hábitos”). Dirigido a empreendedores do mundo tecnológico, o livro fez bastante sucesso. “Fico pensando nesses ex-alunos e me pergunto se eles realmente querem que o mundo seja melhor – ou se desejam apenas ganhar dinheiro”, diz Fogg. “Meu objetivo sempre foi libertar as pessoas da tecnologia.”


Quando B.F. Skinner realizou novas experiências com sua famosa caixa, descobriu o seguinte: se o rato recebesse sempre a mesma recompensa, ele empurraria a alavanca apenas quando tivesse fome. Para aumentar o número de vezes em que o rato empurrava a alavanca, era preciso oferecer diferentes prêmios. Quando o rato não sabia o que receberia – uma pílula, nenhuma pílula, várias pílulas –, aí, sim, ele empurrava a alavanca repetidas vezes. A cobaia estava psicologicamente fisgada. A descoberta ficou conhecida como “princípio da recompensa variável”.


No livro Hooked, Eyal afirma que produtos digitais bem-sucedidos incorporam a descoberta de Skinner. Facebook, Pinterest e outros serviços tiram proveito desse desejo por conexões, aprovação e reconhecimento que é inerente ao ser humano. E oferecem recompensas variáveis. Ao abrir o Instagram, o Snapchat ou o Tinder, nunca sabemos ao certo se teremos curtidas, comentários, atualizações ou até uma mensagem. E assim estamos sempre clicando nos ícones, rolando a tela para o lado e para baixo.


Eyal acrescentou toques pessoais ao modelo de mudança comportamental de Fogg. “Para B.J., os gatilhos são fatores externos”, me disse Eyal numa conversa. “Mas eu acredito que os gatilhos são internos.” Para ele, um aplicativo bem-sucedido tem de atender às necessidades mais primordiais do usuário, antes mesmo que o próprio usuário tenha consciência de tais necessidades. “Quando estamos em dúvida sobre alguma coisa, pesquisamos no Google antes mesmo de nos perguntar o porquê daquela incerteza. Quando nos sentimos sozinhos, entramos no Facebook antes mesmo de nos dar conta dessa solidão. A gente nem percebe que está entediado quando decide ver alguma coisa no YouTube. Nada nos obriga a fazer essas coisas. O gatilho é disparado pelo próprio usuário.”


O comentário de Eyal sobre escolhas inconscientes conduz a uma pergunta sobre o design behaviorista. Se existe alguém “desenhando” nossos comportamentos, quem é que orienta esses designers? Tristan Harris – outro ex-aluno de Fogg – acha que as pessoas devem pensar nisso. “B.J. criou a disciplina do design behaviorista”, afirma. “Mas ele não tem respostas para as questões éticas associadas ao assunto. Estou em busca dessas respostas.”


Harris colaborou com Mike Krieger na criação do Send the Sunshine, na mesma turma que foi aluna de Fogg em 2006. Assim como Krieger, Harris também criou um aplicativo que foi usado no mundo real: o Apture. Esse app oferecia explicações imediatas sobre conceitos complexos para pessoas que estivessem lendo online – bastava passar o mouse sobre um termo específico para ver uma caixa com informações e esclarecimentos. Embora jamais tenha decolado, o Apture fez algum sucesso, e em 2011 a startup de Harris foi comprada pelo Google.


O dinheiro da operação foi bem-vindo, mas trouxe consigo um sabor de derrota. Harris acreditava na importância das explicações oferecidas pelo app, mas foi incapaz de convencer as editoras de que a parceria com o serviço faria os leitores passarem mais tempo nos sites de possíveis clientes. Ele chegou à conclusão de que o potencial da internet para informar e esclarecer bate de frente com o imperativo comercial de captar e manter a atenção do usuário, a qualquer preço. “O objetivo dessas empresas é fisgar as pessoas. Para fazer isso, elas tomam nossas fragilidades psicológicas como reféns.”


Quando um usuário altera a foto do perfil, o Facebook destaca essa novidade no feed de notícias dos amigos. O aplicativo sabe que esta é uma situação em que a pessoa fica vulnerável ao reconhecimento dos outros, e por isso a tendência é acessar mais vezes para conferir se houve curtidas e comentários. Quando recebemos um pedido de amizade via LinkedIn, experimentamos uma descarga de dopamina (puxa vida, como eu sou importante!) – mesmo que a pessoa do outro lado provavelmente tenha clicado numa lista de contatos sugeridos, sem nem pensar no assunto. Impulsos inconscientes se transformam em obrigações sociais; obrigações sociais exigem atenção; e a atenção é vendida em troca de dinheiro.


Harris trabalhou para o Google durante pouco mais de um ano e depois pediu demissão. Ele queria fazer uma pesquisa sobre a ética da economia digital. “Meu interesse era descobrir que tipo de responsabilidade está vinculada à capacidade de influenciar o comportamento psicológico de 1 bilhão de pessoas. Existe um juramento de Hipócrates para essa situação?” Antes de deixar o Google, ele fez uma apresentação de despedida para sua equipe na empresa. Nela, Harris afirmava que os funcionários do Google tinham de estar cientes de seu papel de guardiões morais da atenção de bilhões de pessoas. Os slides da apresentação ganharam uma dimensão inesperada: viralizaram dentro da própria empresa e chegaram à diretoria. Harris foi convencido a permanecer na empresa e realizar sua pesquisa lá mesmo, o que lhe valeu o primeiro cargo de “eticista de design e filósofo de produto” da história.


Depois de algum tempo, porém, ele percebeu que os colegas jamais levariam sua mensagem a sério (embora ouvissem seus argumentos com muita educação). A pressão externa é forte demais. No início deste ano ele saiu do Google de uma vez por todas. Hoje, Harris é escritor e ativista. Seu objetivo é mostrar para as pessoas que o mundo digital pode reduzir a habilidade humana de escolher livremente. “O design behaviorista pode até parecer uma coisa boba; afinal de contas, são apenas cliques numa tela. Mas o que acontece quando isso é aplicado a toda a economia global? Aí vira uma questão de poder.”


Harris tem uma fala rápida, intensa e irritadiça. Um de seus lemas é: “Quem controla o cardápio controla as escolhas”. As notícias que lemos, os amigos sobre os quais ficamos sabendo, as ofertas de emprego que chegam a nós, os restaurantes que escolhemos e até os possíveis parceiros amorosos são, cada vez mais, filtrados por um punhado de aplicativos que nos oferece um cardápio de opções – em linguagem digital, um “menu”. Isso significa que os responsáveis por elaborar esses menus têm um poder gigantesco nas mãos. Qualquer dono de restaurante, crupiê ou especialista em marketing que se preze sabe que as opções podem ser moldadas com o objetivo de influenciar escolhas. As lojas oferecem a opção de “escolher entre três preços” sabendo que pelo menos 70% dos consumidores vão optar pelo valor intermediário.


Harris conta que vários de seus colegas viraram pessoas extremamente poderosas, ainda que por acidente. Os menus de aplicativos utilizados por bilhões de pessoas são criados por meia-dúzia de sujeitos com idade entre 25 e 35 anos, que estudaram ciências da computação e moram em São Francisco. “Que tipo de sistema operacional moral roda na cabeça desses caras?”, pergunta Harris. “Será que eles pensam na responsabilidade ética daquilo que fazem? Será que têm tempo para considerar esse tipo de coisa?”


Quanto mais os produtos tecnológicos influenciam nosso comportamento, menos controle temos sobre nossas escolhas. “As empresas afirmam que estão aprimorando sua capacidade de oferecer o que as pessoas querem. Ocorre que um cidadão médio abre a tela do celular 150 vezes por dia. Será que todas essas 150 vezes são conscientes? Não. Na verdade, as empresas estão aprimorando sua capacidade de fazer as pessoas escolherem aquilo que as próprias empresas querem.”


UM CIDADÃO MÉDIO ABRE A TELA DO CELULAR 150 VEZES POR DIA. SERÁ QUE TODAS AS 150 VEZES SÃO CONSCIENTES?


A antropóloga Natasha Dow Schüll é autora de um excelente estudo sobre apostas em máquinas de Las Vegas, batizado de Addiction by Design (“Vício por design”). No texto, ela cita um colaborador anônimo de um site para recuperação de viciados. “Os caça-níqueis são caixas de Skinner feitas para seres humanos! Não é difícil entender por que elas deixam as pessoas num estado de paralisia. A máquina foi projetada para fazer exatamente isso.” A indústria do jogo é pioneira no design behaviorista, e os caça-níqueis foram criados especialmente para explorar o poder de atração das recompensas variáveis. O jogador puxa a alavanca sem saber o que vai aparecer, ou se vai ganhar alguma coisa – e é justamente por isso que sente vontade de baixar a alavanca de novo.


A capacidade demonstrada pelos caça-níqueis de deixar as pessoas num estado de paralisia é o motor que movimenta a economia de Las Vegas. Ao longo dos últimos 20 anos, as roletas e mesas de carteado perderam espaço para uma nova geração de máquinas: saem as traquitanas mecânicas (as atuais não têm alavanca) e entram complexos computadores, produzidos por engenheiros de software, matemáticos, programadores e designers gráficos.


O objetivo dos cassinos é elevar ao máximo o chamado “tempo no dispositivo”. O ambiente onde as máquinas estão localizadas foi pensado para manter as pessoas ali. É possível pedir comida e bebida na própria tela. A iluminação, a decoração, os níveis de ruído e até o cheiro das máquinas – tudo é cuidadosamente calculado. A intensidade e o ângulo da iluminação são propositais: pesquisas mostram que os jogadores se cansam mais rápido quando recebem luz direto na testa.


Mas o que decide o tal “tempo no dispositivo” são as recompensas variáveis. As máquinas são programadas para fazer o apostador “passar raspando” repetidas vezes. O ícone que representa a vitória aparece acima e abaixo da “linha de pagamento” (aquela que faz o jogador ganhar dinheiro) com uma frequência bem maior do que ocorreria se apenas o acaso estivesse no comando. Desse modo, as perdas são apresentadas como possíveis vitórias, compelindo o sujeito a tentar novamente. Os matemáticos criam sistemas de pagamento para garantir que os apostadores fiquem na máquina mesmo enquanto perdem dinheiro. Diferentes tipos de apostadores, com diferentes disposições para o risco, recebem estímulos diferentes. Alguns se sentem atraídos pela possibilidade de grandes ganhos ou perdas; outros preferem receber recompensas a conta-gotas. Um dos designers revelou a Natasha: “Tem gente que gosta de sangrar aos poucos”. Os matemáticos estão constantemente refinando os modelos e experimentando novas estratégias, adaptando as fórmulas aos contornos do córtex cerebral.


E os próprios apostadores citam um efeito conhecido como “a hora da máquina”: trata-se do estado mental em que a atenção fica completamente absorta na tela à frente, e o resto do mundo desaparece. “É um transe”, disse um apostador à antropóloga. “A hora da máquina é um ímã”, declarou outro. “Ela te suga, te prende ali.”


Quando um jogador está desanimado, prestes a encerrar as apostas do dia, um “embaixador da sorte” passa por ele e dá um tapinha nas costas do sujeito, oferecendo um ingresso para um show ou um cupom de desconto para comprar mais fichas. O apostador, porém, não sabe que os dados dos jogos que ele ou ela realizou foram enviados para um algoritmo. Esse algoritmo calcula até onde aquele indivíduo está disposto a perder e mesmo assim se sentir satisfeito – e também avisa quando a pessoa está se aproximando da “hora da dor”. Nesse momento, a oferta de uma refeição gratuita no restaurante do cassino transforma a dor em prazer, e dá vida nova ao impulso de continuar jogando.


O livro de Natasha foi publicado em 2013, e recebeu muitos elogios por expor o lado negro das máquinas de jogos de azar. Alguns leitores, no entanto, viram uma oportunidade naquelas páginas. A autora me contou que foi procurada por uma empresa de educação online, interessada em adotar a ideia dos “embaixadores da sorte”. Qual é a “hora da dor” para um aluno que não consegue chegar à resposta correta? O que esse estudante precisa receber para não desistir? Natasha foi convidada para dar palestras em congressos cujo público era composto por gente de marketing e empreendedores – incluindo um seminário sobre formação de hábitos, organizado por Nir Eyal.


Las Vegas é um microcosmo. “O mundo está se transformando numa imensa caixa de Skinner para o self”, afirma ela. “As experiências que vêm sendo criadas no setor bancário ou de saúde são iguais ao Candy Crush. Elas mergulham as pessoas num ciclo de incentivo e recompensa. O café no Starbucks, o software de educação, o cartão de crédito, o remédio para diabetes. Todos os pontos de contato com os consumidores estão virando uma máquina caça-níqueis.”


E atualmente, é claro, cada um de nós carrega um caça-níqueis dentro do bolso.


Natasha aceitou o convite para falar na conferência organizada por Eyal. “Foi estranho. Ninguém naquela sala tinha a intenção de deixar os outros viciados. Afinal de contas, a plateia estava cheia de hipsters de São Francisco. Pessoas boas. Ao mesmo tempo, elas queriam fisgar gente para as startups.” Para Tristan Harris, a maioria dos profissionais que trabalha com tecnologia não está disposta a enfrentar a tensão inerente a esse universo. “Nir e B.J. são caras bacanas. Mas eles estão superestimando a própria capacidade de colocar a decisão na mão dos consumidores, e subestimando a possibilidade de deixá-los ‘fisgados’.”


O Vale do Silício é um lugar banhado pelo sol. Quem trabalha lá costuma ser otimista, e acredita que os produtos e serviços criados ali têm o poder de impulsionar o potencial humano. À semelhança de Fogg, Eyal tem a sincera intenção de transformar o mundo num lugar melhor. “Para mim, o design de produtos é quase uma religião. As pessoas que criam esses produtos têm a capacidade de melhorar a vida dos outros, de ajudar a resolver obstáculos e dificuldades.” Ele discorda da ideia de que a tentativa de “fisgar” as pessoas é questionável por essência. “Os hábitos podem ser bons ou ruins, e a tecnologia oferece a possibilidade de criar hábitos saudáveis. Não vejo problema em produtos que deixam as pessoas cada vez mais ligadas. Para mim, isso é progresso.”


Os executivos dos cassinos entrevistados pela antropóloga Natasha não são malvados. Eles acreditam que estão apenas oferecendo jeitos melhores e mais fáceis para os clientes fazerem aquilo que querem. Ninguém é coagido ou enganado na hora de gastar dinheiro. Nas palavras de um desses executivos (que parecem um eco à declaração de Fogg), “é impossível obrigar as pessoas a fazer aquilo que elas não querem fazer”. Mas Natasha aponta o aspecto desigual dessa relação. Para o apostador, a “hora da máquina” é um fim em si mesmo; para a indústria do jogo, é uma fonte de lucro.


Tristan Harris aplica esse mesmo princípio à economia digital como um todo. Por mais úteis que sejam os produtos oferecidos, a natureza do sistema pende em favor das empresas. A banca sempre leva. “Existe um conflito fundamental entre as necessidades das pessoas e as necessidades das empresas”, ele explica. Harris não está sugerindo que as companhias estejam envolvidas numa trama nefasta para controlar a mente humana – Google e Apple não tomaram a decisão de criar celulares que agissem como caça-níqueis. Mas o imperativo desse sistema é aumentar o “tempo no dispositivo” – e a melhor maneira de fazer isso é oferecer recompensas variáveis ao usuário.


Além disso, é preciso trancar a porta da caixa. Coisas bobas e importantes se misturam no mesmo ambiente: a máquina onde se joga um game e se lê as últimas fofocas do mundo das celebridades é a mesma que nos informa que um filho está doente. Por isso a gente não desliga nunca, não esquece em casa. Além do mais, vai que você perde uma coisa legal no Instagram?


“Tem gente preocupada com a inteligência artificial”, diz Harris. “Essas pessoas se perguntam se é possível usar o potencial dessa tecnologia ao máximo, sem prejudicar os interesses humanos. Mas a inteligência artificial já existe, ela está aqui. O nome dela é ‘internet’. Abrimos uma caixa-preta que está sempre inventando jeitos novos de nos convencer a fazer determinadas coisas, levando as pessoas de um transe a outro.”


Em tese, todos nós temos a capacidade de cair fora desse transe de incentivo e recompensa – mas poucos decidem fazê-lo. É mais fácil aceitar a situação e ficar conectado. Se todos nós viramos “cativos da cativologia”, o fizemos por vontade própria.

Extraído de https://viewer.aemmobile.adobe.com/index.html#project/b13e062b-f147-416c-936f-c7f1a5f1c5f2/view/edicao_116_outubro_2016/article/negocios___-dj-5c4e6aa5-2fea-4dfe-8aff-14dad61927d9

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